quarta-feira, 2 de fevereiro de 2011

O homem sem nome.

Depois da cirurgia de correção do septo nasal, esperava acordar na sala de recuperação. Ao invés disso, acordou em um quarto cinzento deitado em uma cama pequena com o colchão tão fino que dava para sentir as ripas de madeira que davam sustentação a armação de metal tubular da cama. O simples movimento de levantar fez a cama exprimir um barulho tão alto quanto irritante. Viu uma porta, ao abri-la encontrou uma despensa abarrotada de latas de feijão, um abridor e uma colher. No outro canto do quarto um vaso sanitário amarelado e sujo, uma pia minuscula e uma saída de encaixe para um chuveiro. O chuveiro mesmo não existia. Era isso. Exceto por um pequeno buraco na parede.
A iluminação do quarto inteiro dependia do buraco. Esse buraco dava para um apartamento vizinho. Normal. Padrão para a época. Tentou gritar por socorro, mas nada aconteceu. Era como se o homem que bebia uma cerveja assistindo algo na televisão simplesmente não ouvisse. Nem a mulher que aparecia de tempos em tempos trazendo as louças que seriam postas para o jantar. Gritou até ficar rouco. Pelo tamanho da barba calculou ter dormido por três dias.
O desespero deu lugar ao conformismo no terceiro mês. A barba já cobrira todo o seu rosto. Cortava as unhas com os dentes. Sentia gosto de pedra ao comer o feijão. Parou de falar para não contaminar a lembrança que tinha do tom de voz das pessoas que mais gostava, porém o tempo fez eles se tornarem mais confusos. Parou de procurar explicações do porque estar preso de uma forma tão cruel, até os assassinos têm com quem conversar. Não lembra de ter feito mal a ninguém. Pelo menos não que valha tamanha punição. Satisfazia sua curiosidade sobre o mundo vendo os vizinhos de buraco. Sabia que era hora de dormir quando parava o movimento na sala através do buraco. Queria ler alguma coisa, ouvir uma música. Queria sentir um toque. Sonhava todas as noites com um toque. Algumas vezes com um simples encontrão enquanto esperava o metrô.
Um dia perguntaram-lhe seu nome através do buraco. Respondeu. Isso se repetia no que ele achava ser uma vez por ano. Contou trinta e sete indagações iguais. Na trigésima oitava não soube responder, já não sabia seu nome. Não conseguia lembrar como falá-lo. Talvez pela solidão, ou talvez pelo mal de Alzheimer. A idade havia chegado. Perdeu todas as lembranças. Acordava diariamente sem saber onde estava. As latas de feijão continuavam a aparecer. Se perguntava sempre se ainda estava vivo. Desejava a morte como se deseja uma mulher. Esqueceu como rir. E como chorar também. Transformou-se em um fantasma vivo. Era assim que se sentia. Sentiu que passou e não foi visto. Sentiu-se um mendigo, um marginal. Um daqueles que não se vê enquanto andamos na rua.
Acordou um dia com uma arma ao seu lado. Apenas uma bala no tambor. Pensou por dois dias e disparou contra a parede. Agora poderia ver o outro lado com os dois olhos. Notou que os buracos eram semelhantes. Iguais se vistos de longe. Alguém fez o primeiro buraco assim como ele. Alguém, assim como ele, teve mais medo do que não conhece do que entusiasmo com a chance de sair da situação mais deplorável do mundo e preferiu apenas um pouco mais de luz, e de vida alheia.

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