terça-feira, 28 de dezembro de 2010

José

José



Ele simplesmente finge. Finge não ser ele, finge não ser com ele. Mas no fundo sabe que tudo volta quando feito com tanta dissimulação e desapego. Quando deita a cabeça para tentar, pela centésima vez, dormir, sem sucesso, finge estar dormindo para que pelo menos nos sonhos a vida tenha-o feito diferente. Tenta pela milésima vez fazer algo que valha.
Criminosos passam, no máximo, 30 anos presos. Ele está a 40, preso na carcaça putrefata que nasceu. Já nasceu nesse estado. Chorou por desgosto de ter nascido. Nem a coragem de cortar, pular, não fechar o gás ou fazer rodar o tambor ele teve. Talvez por isso veja no envenenamento diário e lento de um whisky barato a salvação para essa covardia. Nunca casou, sempre amou errado. Sempre amou o degradante, o ultrajante. Tem um emprego público, assim seus pais queriam que fosse. Odeia carimbos, selos, conversas que não passam do desinteressante casual, mas ele próprio não tem outra conversa. Nunca se interessou por nada. Livros, filme, nada. Apenas Charles Mingus. Sobre isso ele conversa, mas até sobre sua maior paixão, conversa sem amor.
Conheceu outro dia sua pedra de salvação, pelo menos achou ser. Bonita, jovem, entrou no bar por acaso, para pedir uma localização. Seu coração saltou a boca, quando ela perguntou sobre o prédio da prefeitura. Um sotaque diferente. Um cheiro diferente. Ele que nunca havia saído da cidade via nela a possibilidade de conhecer pelo menos um lugar diferente do usual. Deu a localização, afinal era lá que trabalhava. E como fosse essa a última oportunidade que Deus daria disse: “Trabalho lá, e tenho que voltar ao expediente. Posso acompanhá-la?”
Pela primeira vez, teve uma conversa que lhe agradou de verdade. Talvez pelo tom doce das palavras, ou pelo vermelho da boca que as expurgavam. Apaixonou-se pela primeira vez. Apaixonou-se no segundo dos quatro quarteirões que separavam o bar de costume do lugar onde passaria mais quinze anos carimbando formulários de aquisição de materiais necessários às obras da prefeitura. Separaram-se junto à sala de registros dos imóveis. Ele não teve coragem de falar mais nada.
Morreu aos oitenta anos, sentado, olhando através da janela da casa geriátrica que pagava com a aposentadoria. Morreu lembrando da mulher sem nome. Morreu arrependido de não ter falado. Morreu sem saber a resposta à sua pergunta. Lhe digo que a resposta seria “não”. Afinal, quem daria “sim” à um homem cuja vida cabe em menos de uma lauda?

Nenhum comentário:

Postar um comentário