sexta-feira, 31 de dezembro de 2010

Wilson está no bar, com todos os amigos do trabalho. As conversas são basicamente as mesmas, só o volume e a euforia, parte causada pelo álcool, aumentam um pouco. Mas, apesar de participar da conversa, o faz com certa distância. Nada proposital, até porque Wilson sempre foi dos mais animados. Sua cabeça canta um mantra triste. Canta o fim. Wilson descobriu que vai morrer.
Um câncer descoberto nessa mesma tarde já em estado avançado cobre seu pulmão de negro. Os anos de abuso de tabaco, e uma certa carga genética são os prováveis responsáveis. O que preocupa Wilson não é a morte, ele sabe o que lhe espera, e não teme. Não vai ser hipócrita justo agora. Sabe que é o nada que lhe aguarda de braços cruzados, porque abertos é que não estariam. O que está lhe corroendo é a incerteza do quando. Wilson sempre odiou surpresas.
Wilson sempre planejou tudo. Onde e o que estudar, por quem se apaixonar. Com quem casar e quando e quantos seriam seus filhos. Foram dois. Onde e o que estudariam. Wilson quase morreu ao saber da gravidez de sua filha mais velha. Não foi assim que havia planejado ser avô. Mas pelo menos o nome do menino foi como havia planejado. Bernardo. Wilson não é má pessoa, tem, como todos, seus defeitos. Mas sempre foi ótimo pai e marido. Não poderá ser ótimo avô, porque a morte não deixará.
Wilson acende um cigarro, abre a carteira para pagar sua parte da conta, vê a foto do neto e sai do bar. Wilson joga o carro da ponte e deixa um bilhete que diz: "Desculpem-me, eu não poderia esperar."

quarta-feira, 29 de dezembro de 2010

Complemento Visual ao Post Passado.




Imagem meramente ilustrativa do que eu quis dizer no post passado.

Insônia.

Faltam 15 minutos para as duas da manhã. Ela tinha me abandonado, mas não aguentou a distância e voltou. Me ligou com uma voz trêmula, como se pedindo desculpas pela ausência dos dias anteriores. Desculpas aceitas. Minha companheira mais antiga, que me conhece desde menino. Viu todas as minhas fases desde os 12 anos. Pouca gente me conhece como ela, só ela sabe meu desespero e o meu amor.
Já tentei expurgá-la, bani-la, já praguejei seu nome e amaldiçoei seus filhos. Mas não vivo sem ela. Ela me permite estar aqui, ela faz parte de quem eu sou, acho que não posso não tê-la, e na verdade, na sua ausência, sinto uma ponta de saudade. Saudade da solidão que ela me causa, mas que faz meu cérebro funcionar por mais horas. Mais tempo para pensar, mais tempo para amar, e como consequência, mais tempo para sofrer.
Em todas as fases que ela esteve do meu lado, eu fui feliz, pelo menos a maior parte do tempo. Ela foi a escola comigo, viu minhas notas baixas. Foi a faculdade, e até quando mudei de país, levei-a comigo, junto às coisas mais importantes, fotos, lembranças, insônias.
Me acompanhou nas perdas, e nos ganhos, esteve comigo na doença e na saúde. Tenho uma leve impressão que até depois da morte ela vai estar comigo. Não há ninguém como você, ninguém me completa como você, nada esteve tão perto de mim por tanto tempo. Insônia, eu te amo. Mas como todo bom amor, eu te odeio em parte.
Você vale os quinze minutos que estou dando, você vale mais que isso. Mas na verdade, no consciente involuntário, eu quero que você se foda.

terça-feira, 28 de dezembro de 2010

Parece que todo sábado é assim.

Ontem bebi como se nunca fosse amanhecer, terminei a noite decepcionado com a aurora. Mas sentindo a ressaca e a enxaqueca que a acompanham, fiquei agradecido por não ter durado mais. É sempre assim.

About You.

As soon as you know how much i care.
How much I can do, how deep the things I said are the truth.

Christmas

Assim terminou o Natal de 2010. Eu acabei ele chorando. Chorando a saudade. Ainda bem que eu sempre tive uma boa memória para esse tipo de coisa. Lembrar do gosto do Bolo de Chocolate Branco da minha infância que ela fazia. Lembrar dos apelidos que ela me chamava. Meu maior medo é não conseguir apagar da lembrança as ultimas imagens que tive dela. Não conseguir apagar o que a doença e a vida fizeram com uma das minhas tias mais bonitas.
Tudo que eu consigo pensar agora, foi no prazer de tê-la tido por perto. E essa foi exatamente a última coisa que lhe disse, “muito prazer tia Ceça”.

José

José



Ele simplesmente finge. Finge não ser ele, finge não ser com ele. Mas no fundo sabe que tudo volta quando feito com tanta dissimulação e desapego. Quando deita a cabeça para tentar, pela centésima vez, dormir, sem sucesso, finge estar dormindo para que pelo menos nos sonhos a vida tenha-o feito diferente. Tenta pela milésima vez fazer algo que valha.
Criminosos passam, no máximo, 30 anos presos. Ele está a 40, preso na carcaça putrefata que nasceu. Já nasceu nesse estado. Chorou por desgosto de ter nascido. Nem a coragem de cortar, pular, não fechar o gás ou fazer rodar o tambor ele teve. Talvez por isso veja no envenenamento diário e lento de um whisky barato a salvação para essa covardia. Nunca casou, sempre amou errado. Sempre amou o degradante, o ultrajante. Tem um emprego público, assim seus pais queriam que fosse. Odeia carimbos, selos, conversas que não passam do desinteressante casual, mas ele próprio não tem outra conversa. Nunca se interessou por nada. Livros, filme, nada. Apenas Charles Mingus. Sobre isso ele conversa, mas até sobre sua maior paixão, conversa sem amor.
Conheceu outro dia sua pedra de salvação, pelo menos achou ser. Bonita, jovem, entrou no bar por acaso, para pedir uma localização. Seu coração saltou a boca, quando ela perguntou sobre o prédio da prefeitura. Um sotaque diferente. Um cheiro diferente. Ele que nunca havia saído da cidade via nela a possibilidade de conhecer pelo menos um lugar diferente do usual. Deu a localização, afinal era lá que trabalhava. E como fosse essa a última oportunidade que Deus daria disse: “Trabalho lá, e tenho que voltar ao expediente. Posso acompanhá-la?”
Pela primeira vez, teve uma conversa que lhe agradou de verdade. Talvez pelo tom doce das palavras, ou pelo vermelho da boca que as expurgavam. Apaixonou-se pela primeira vez. Apaixonou-se no segundo dos quatro quarteirões que separavam o bar de costume do lugar onde passaria mais quinze anos carimbando formulários de aquisição de materiais necessários às obras da prefeitura. Separaram-se junto à sala de registros dos imóveis. Ele não teve coragem de falar mais nada.
Morreu aos oitenta anos, sentado, olhando através da janela da casa geriátrica que pagava com a aposentadoria. Morreu lembrando da mulher sem nome. Morreu arrependido de não ter falado. Morreu sem saber a resposta à sua pergunta. Lhe digo que a resposta seria “não”. Afinal, quem daria “sim” à um homem cuja vida cabe em menos de uma lauda?