quinta-feira, 2 de junho de 2011

Aquele do cara que nunca dorme. Parte um ou única.

Completos os vinte primeiros anos de vida de forma discreta, sempre foi mediano. Aluno médio. Beleza média. Humor médio. Até o dia do acidente. Estava só no carro, bebeu uma cerveja a mais e encontrou a árvore na avenida principal do caminho para casa. Quem viu o acidente e o resgate garantia que ele nunca mais abriria os olhos. Se o fizesse, nunca recuperaria os sentidos normais. Impossível sair sem sequela alguma. As previsões estavam absolutamente corretas.

No quarto escuro do hospital com ela rezando ao lado da cama, abriu os olhos. Um alvoroço foi instaurado. Todos da equipe médica checaram uma por uma de suas funções. Sentia as pernas. Via com clareza. Ouvia e falava perfeitamente. Sentia o odor do Éter usado na esterilização do ambiente. Lembrava seu nome, lembrava que o dela começava com "L". Lembrava a soma entre dois números. O ano que o Brasil fora campeão da Copa do Mundo. Lembrava inclusive a escalação. Ainda não sabia, mas sua memória se tornaria um marco.

Um dia inteiro de exames e festas dos amigos e familiares. Todos o visitavam. Queriam ver o milagre acontecido. Todos impressionavam-se, além da cicatriz escondida pelo cabelo na parte lateral da cabeça, nada. Nada, mesmo. Nem um risco sequer para que alguém acredite que ele estava em um acidente tão bruto. Mais alguns exames. Todos horrivelmente normais. No ano de 1995 os carros não tinham tantos recursos de segurança. O dia passou numa velocidade estonteante. Talvez por ter acontecido tanta coisa. Chegou a noite. As horas simplesmente andavam. O sono não chegava. “Vou dar-lhe um pouco mais de anestésico.” disse o médico. Ineficaz como um guarda chuvas em dia que caem canivetes. Já passam das duas da manhã. “Deve ser a excitação” especula o de branco.

Aos quarenta e seis anos, (os vinte e seis já passaram, pela mesma preguiça que bateu no autor da bíblia), ele ainda não dormiu. Descobriram em um exame invasivo, que houve um dano irreversível no cérebro. No começo acharam que morreria de estafa física e mental. Simplesmente não aconteceu. As funções vitais mantinham-se intactas. Sem perda de memória. Sem alteração nas taxas hormonais. Um horror biológico. Aproveitou para fazer tudo. Graduou-se em nove cursos diferentes. Das mais diversas áreas do conhecimento. Trabalhava mais que todos. Possui um relógio biológico invejável, exceto pelo sono. Parou de beber e treinou bastante, o que lhe tornou um exímio motorista. Casou-se com ela, e sempre teve tempo para a família. Cuidava de tudo que podia. Viajou o quanto pode, afinal, seu corpo nunca cansava. Tinha um problema sério em sua vida. A evolução surreal da maturidade. Aos vinte e cinco pensava como se dez anos mais velho fosse. E assim sucessivamente em progressão geométrica.

O único desgaste que sentia era psíquico. Não suportava o tédio. Não havia mais filme que o entretece. Livro que o interessasse, ou música que nunca ouvira. Todos os tipos de trabalhos manuais era um perito. Marcenaria, fundição, luthieria. Era exímio músico em vários instrumentos. Nada o interessava. Apenas sua família. Viveu os últimos 5 anos em função deles. Sabe que não será imortal, os anos passaram em sua pele. Já não tem mais a rigidez cutânea que tinha. Os cabelos mudaram de cor. Apenas um hábito não mudou. Todos os dias, durante o banho matinal, passa o shampoo no cabelo, sente a cicatriz com a ponta dos dedos. E sonha acordado com conseguir dormir novamente. Sonha com o dia que um sonho volte a acontecer. Sonha em dormir, nem que seja na morte.